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Brincando lá fora

Acho que, se nesse momento, alguém me pedisse qualquer conselho, sobre qualquer coisa, eu diria: vai viajar.

Faz um tempo, em um dos dias que faço o que sei que não devo, entrei na etsy atrás de uma capinha nova pro celular, sabendo que nunca sairia de lá apenas com uma capinha de celular, e me apaixonei por uma ilustração. Era só um globo e em cima dele escrito “go play outside”. Me apaixonei porque é tão simples, vá brincar lá fora, sai de casa, menina!

Não comprei a ilustração na época, pelo provável motivo de pobreza, mas estou comprando nesse exato minuto. Comprei também, um pouco antes de viajar, um relógio com um mapa no fundo. É um lindo relógio, mas não acho que foi por isso que comprei, mas porque de alguma forma ele parecia me dizer que é hora de ir, que sempre é hora de ir.

Acabei de voltar de viagem e confesso que fiz muito esforço para não sentar e chorar no meio do aeroporto de Amsterdam. Estava um pouco cansada da Turquia, é verdade, mas poderia tão facilmente ficar ali no caminho. Nem era uma questão de Holanda, ou Europa, eu só queria continuar viajando mesmo.

Viagens parecem ser aquele pequeno intervalo na sua vida de verdade, aquelas interrupções que acontecem entre os momentos em que você está realmente vivendo, mas eu, sinceramente, acho que é o contrário. Todo o tempo em que eu estou trabalhando, cumprindo prazos, lidando com frilas estúpidos, enfiando o pé na lama, pegando garoa e perdendo o ônibus só existe como intervalo necessário para o tempo em que não estou aqui, o tempo em que estou realmente vivendo.

Eu gosto da minha vida, mesmo. Mas vida, por mais que você goste, vira rotina. Eu não reparo na forma como o sol de São Paulo bate no meu rosto, não vejo se as cores na feira se coordenam de forma interessante, esqueço com muita frequência o quanto o Rio de Janeiro é bonito. Mas quando você não está, existir vira novidade. O calor do sol da Capadócia, o cheiro do ar de Istanbul, a forma como o vento de Paris bate no meu cabelo, os meus passos nas ruas de Paraty, eu reparei em tudo isso. Estar ali torna-se algo mais completo, você está por inteiro, é preciso sentir todos os gostos, ouvir todos os sons, estar onde se está.

Tenho enorme dificuldade de estar onde estou, quero sempre estar onde não estou. Quero sempre aquilo que não tenho, exceto quando estou viajando.

Consigo antever comentários dizendo que isso é uma questão minha, que reparar no mundo ao seu redor, que existir plena e inteiramente no momento em que se está é uma questão interna. Pode ser. Se for esse o caso, assumo minha total incapacidade. Assim como algumas pessoas nunca conseguirão assobiar, ou andar de bicicleta, ou jogar xadrez, eu nunca conseguirei me sentir totalmente presente no lugar onde estou, a menos que viaje (também nunca vou conseguir jogar xadrez, mas essa é outra história).

Faz semanas que eu estava me batendo com uma pergunta que preciso fazer. Semanas que eu procurava essa pergunta que eu sabia que precisava fazer, mas não sabia bem qual era. No meio da viagem, em algum momento, eu soube. Porque eu estava ali. Porque eu estava sentindo o sol no meu rosto e não girando em torno do mesmo assunto sem parar, como a louca obcecada que sou. Tão longe de casa eu encontrei minha pergunta e fiquei um pouco mais em paz.

Por outro lado, todo o caminho entre o aeroporto de Amsterdam e o de São Paulo, todas as longas doze horas de voo, foram um crescendo da minha angústia. Gostaria de saber qual teria sido a reação do cara do meu lado se eu tivesse realmente caído no choro como era minha vontade. Já chorei em um avião, foi um voo de 14 horas e chorei por todas elas, convulsivamente.

Não chorei dessa vez, mas quis. Quanto mais perto de São Paulo, mais eu queria chorar, mais eu queria fazer as perguntas erradas, mais eu voltei a doer por aquilo que anda doendo. Me pergunto se tenho a mesma relação com relacionamentos: se uma vez que a novidade some e a rotina se instala, eu fico angustiada, ansiosa, com vontade de chorar e de ir embora de novo.

Mas a verdade é que a angústia volta, mas não volta por inteiro: eu realmente achei minha pergunta. Gosto de pensar que algo em mim muda cada vez que volto de viagem, que minhas roupas mudam, meu jeito de sorrir ou de prender o cabelo muda, que eu volto outra. Sei que é pretensão achar que vou voltar outra de cada passeio de algumas semanas que dou, mas acho que volto é mais eu mesma.

Está aí outra consequência de sair: cada vez que eu saio, eu aprendo um tanto sobre mim mesma. Sair é descobrir exatamente o que me incomoda, o que eu não quero, o que é importante, do que eu sinto falta. Nessa viagem eu definitivamente descobri do que sinto falta e está corroendo meus órgãos, mas foi bem importante descobrir o tamanho dessa falta.

Não queria, de verdade, voltar para casa. Preciso ensinar meus gatos a viajar e pedir um emprego na National Geographic. A Simone me contou de um casal de mochileiros que viaja com a gatinha deitada na mochila, é isso que eu preciso fazer, inclusive acho que Cléo e Gatsby seriam viajantes muito charmosos, aquele focinho preto do Gatsby tem todo um ar de explorador do século XIX.

Também preciso pedir meu visto para o Camboja. Lavar minha mochila. Viajar de novo. Acho que nesse gastei cada centavo meu viajando. Estou negativa em dois bancos, estou devendo rios de dinheiro pra minha mãe e minha avó. Não me arrependo. Definitivamente, não me arrependo. Acho que vou me arrepender menos ainda quando chegar no Taj Mahal.

080

(escrevi loucamente nessa viagem, enchi páginas e páginas de caderno, a maior parte dos textos vai entrar aqui aos poucos, tento alternar para vocês não enjoarem)

The artist is present

“Okay I read this article about Fiona Apple in New York Magazine where she said, ‘Oh everybody acts like I’m nuts. I’m not nuts. I just want to feel it all.””

Eu só quero sentir tudo. Nesse último álbum da Fiona Apple a primeira coisa que ela diz é “I just wanna feel everything” e soa romântico, boêmio, um pouco saído de um romance do Kerouac, porque é fácil esquecer que um pouco antes ela disse “every single night is a fight with my brain”.

Eu gosto da ideia de sentir tudo. De aceitar cada coisa que vem, absolutamente todas as coisas. De entrar em relacionamentos que eu sei que vão dar errados, de pegar ônibus com cabras na Bolívia, de ceder a curiosidade de encostar meu dedo um pouco mais perto da chama, de me apegar.

Sentir tudo envolve uma quantidade imensurável de dor. Porque a vida é assim e na maior parte do tempo tudo que você ganha é mesmo decepção e sofrimento. E eu já disse aqui outras vezes, que eu tenho uma atração um tanto perturbadora por tudo que dói.

Mas é uma coisa se deixar machucar, chorar e sofrer no conforto do seu lar. No chão da minha casa eu me arrasto, choro ouvindo Edith Piaf e considero que aquela garrafa de vodca cheia na geladeira talvez seja suficiente pra minha dor passar. Mas é outra coisa fazer como a Fiona e transformar essa vulnerabilidade em arte.

Mas é mais que isso. Para se chegar nesse nível de “sentir tudo” que pode ser transformado em arte é preciso se despir de tantas defesas, é preciso uma vulnerabilidade tão sincera, tão crua, um desapego de si que soa quase suicida. É preciso ser a Marguerite Duras, menina, na balsa sobre o Mekong, de vestido transparente, totalmente pronta para amar ou não amar o Chinês.

E é essa a arte que me interessa. É a Sylvia Plath dizendo em Lady Lazarus “The second time I meant /To last it out and not come back at all” é a Fiona Apple assumindo que every single night is a fight with my brain. Me interessa fazer essa arte, me interessa me colocar nesse lugar completamente vulnerável a tudo, perder todas as cascas e deixar que minha pele absorva tudo que encosta. Me interessa a Marina Abramovic sentada, aceitando cada estranho que se coloca diante dela.

Esses dias eu me vi frente a essa questão. Frente a possibilidade de lembrar que sou gato escaldado. Eu senti, eu ainda sinto, o gosto do meu próprio coração se partindo. Eu ouço pulsar nos meus ouvidos aquele anúncio antigo de que vai doer, de que eu vou cair. Eu poderia ir embora, ou eu poderia fechar as portas dentro de mim. Simples, limpo, ascético, sem sangue, sem dor, sem sofrimento. Sem me envolver onde não me convidaram a me envolver, sem entrar com os dois pés onde eu não deveria ter nenhum.

Mas então eu quis fazer o experimento. Eu quis não lembrar que eu já sei o que vai acontecer. Não ser madura, ou experiente, não ter medo. Vestir o vestido de linho fino e transparente da Marguerite Duras e deixar que o Amante Chinês vire seu mundo de cabeça para baixo, mesmo que você saiba desde o início que o final não vai, não pode ser feliz.

Não é sentimentalismo. Não é amor. É a vontade de deixar meus ossos serem triturados porque aqui onde eu estou inteira não há arte. E é mais que isso, é aprender a me alimentar da minha própria vulnerabilidade. É ir contra todos os meus instintos: eu sou reservada, orgulhosa, distante. Mas eu me proponho a ser experimento de mim mesma, de expor (não aqui, vejam bem), de trabalhar, de construir uma fragilidade assustadora e tirar o que eu puder dela. É consciente, é difícil e é dolorido desde já. Talvez por isso eu esteja dizendo isso publicamente, para não poder desistir.

Ao mesmo tempo é empolgante e eu me sinto mais perto do que nunca do que eu realmente quero encontrar.

My heart’s made of parts of all that surround me
And that’s why the devil just can’t get around me

Egotrip

 

Há algumas horas atrás eu disse para alguém “pra ser artista você precisa de uma dose de ego, pelo menos pra considerar encher o mundo de expressões dos seus sentimentos/opiniões”

É bem isso.

Eu vivo em uma corda bamba entre as coisas que eu quero realmente fazer, porque eu amo, porque é isso porque é tudo que eu sempre quis da minha vida e não ter coragem de pedir para o mundo prestar atenção nelas.

Eu não tenho coragem de roubar duas horas da vida de alguém com um filme meu, ou alguns dias com um livro que eu pudesse escrever. Não tenho. Minha vontade é dizer “me esquece, vai ver Bergman, vai ler Dostoievski”. Mesmo quando eu olho para algo que eu fiz e acho realmente bom eu não tenho coragem de pedir que alguém efetivamente gaste tempo, energia e atenção comigo.

Por outro lado eu tenho um blog, não? Eu venho aqui e escrevo as vezes e se fosse só para mim eu me mantinha no meu diário. Eu tenho um diário. Eu tenho infinitos cadernos diferentes, onde coisas diferentes estão escritas, algumas para nunca serem mostradas.

Eu não sou melhor que as pessoas que as vezes eu julgo. Eu não sou melhor que a menina que eu julguei esses dias porque parecia não ter qualquer dúvida, insegurança ou dor em relação ao trabalho dela. No fundo, eu gostaria que o mundo parasse e prestasse atenção em mim e perdoasse todas as minhas esquisitices porque só porque sim.

No fundo eu meio que construí a coisa de um jeito em que sim, eu posso ser desagradável, desorganizada e chata e as pessoas deixam passar porque eu embalei de um jeito bonitinho e coloquei o rótulo de que eu sou esquisita, inconstante ou reservada. Eu ouço muitas vezes que eu sou uma espécie de exceção de pessoa legal dentro de um certo tipo de pessoas. Não. Eu só sou melhor em açucarar as coisas.

Meu problema é que a camada de açúcar não é mentira. Minha timidez e minha insegurança e essa vontade imensa que eu tenho de nunca incomodar ninguém, de que ninguém nunca sofra por minha causa um único segundo, são de verdade. E elas convivem com alguém que tem essa droga de blog e não fala de mais nada, além de si mesma.

Inclusive, eu tenho uma tag que chama Egotrip, mas vou me enganar postando isso as 4 da manhã, quando ninguém vai ler.

Sangue

I want to be strong I want to laugh along
I want to belong to the living
Alive, alive, I want to get up and jive
I want to wreck my stockings in some juke box dive

All I Want- Joni Mitchell

– Vai começar tudo de novo não vai? Quer dizer, eu, eu vou começar de novo. Eu estava bem, ok, talvez não bem, mas eu estava quieta. Não me olha assim, eu sei o que você acha. Mas só é bonito de fora. Eu sei, eu sei que você nem sempre esteve fora, mas você mesmo disse que não era fácil. Eu estava quieta, eu gostava assim, eu gostava de querer a mesma coisa por mais de 5 minutos. O que eu quero? Não sei. Eu quero ir embora. Para Suécia. Para Paris. Para Buenos Aires, para Austrália, quero ver aurora boreal. Vietnã! Não sei, não me importa… Por que? Porque não quero ir, quero ficar. Claro! eu quero escrever essa dissertação, claro que quero. Claro que não vou mudar de tema. Claro que quero mudar. Ah sim, não, esses eu não vou escrever. Tenho, três ideias, talvez uma delas eu escreva, a outra é muito cedo, a última não posso. Não posso porque preciso saber o que você viu, o que eles viram, o que eles fizeram, não quero, não posso saber. Desculpa, eu sei, mas eu não posso, foi sua escolha e o que você viu é só seu, não posso carregar junto. Por que? Não sei, mas eu já bebia demais quando você me conheceu, deve ser para desacelerar. É, sabe? quando tudo começa a ficar mais devagar, eu penso mais devagar, eu quero menos coisas. É claro que eu quero querer menos coisas, ninguém pode fazer tanto. Se eu durmo? as vezes, nem todos os dias, mas eu nunca dormi todos os dias, você sabe disso. Eu não fumo demais, você fuma muito mais que eu. Não quero parar. Sim, um dia eu paro. Não agora. Por que? Não sei, você me faz perguntas difíceis demais. Não, não é por isso. Talvez seja porque eu não devo. O que você quer que eu diga? Eu sempre tive um gosto por quebrar regras, só por quebrar, tem um gosto ótimo. Como beber rum cubano escondido direto da garrafa, você lembra? Você disse que eu tinha um jeito adorável de desprezar tudo que era sensato e eu disse que ia ser meu fim, você disse que não, que por qualquer motivo eu sabia fazer isso. Que eu era mais Hemingway que Kerouack, que eu ia durar. Eu te amei naquele minuto como em nenhum outro, mas você estava errado. Porque eu tentei ser sensata. Sim, eu sobrevivi, mas só metade, não inteira e minhas cicatrizes fecharam do jeito errado. Sabe tudo que você viu? Eu também vi, só que do lado de dentro. Eu sei que você sabe. Sim, é por isso que eu fujo, mas não é a dor que parece ser, é que eu já não tenho partes de mim mesma para perder. Não, é claro que você arrancou algumas e é lógico que ele arrancou outras, mas não é disso que eu estou falando. Estou falando das que eu mesma matei, com você, com ele, com os outros. Eu não tenho medo do que vocês me arrancam, eu tenho medo do que eu mesma tento matar para conseguir ficar. Eu nunca quero ficar. Não, nem com você. E no fim eu fiquei né? Você foi embora, mas você também nunca quis ficar, então talvez faça sentido. Agora? Não, é claro que eu não vou embora, o que ia adiantar? Você sabe que não adianta, que não passa, que nunca passa. Que eu comecei tudo de novo, que todos esses anos em que eu consegui parar no olho do furacão, estável, sensata, anestesiada, acabaram. Como? Viva.

Faltou um pouco de vento

Eu gostava que você tinha gosto de cigarros. Eu gosto ainda. Eu gostava do cheiro meio desmaiado de fumaça no meu cabelo de manhã e eu sei que você detestava como eu acendia seu isqueiro e aproximava um dedo, mais próximo, tão próximo que eu sabia que se respirasse mais forte ele entraria na chama.

Eu achei que você detestava o quão perto eu chegava de machucar a mim mesma assim, na sua frente, com seu próprio isqueiro. Mas talvez você apenas não pudesse suportar o quão perto da chama eu podia chegar sem nunca errar, sem nunca tremer a outra mão, sem que nunca um vento empurrasse o fogo na minha direção.

Outro dia, sem querer, eu queimei meu braço no forno. Ainda assim, eu brincava com o fogo, perigosamente perto, deixando minha mão ali por tempo suficiente para que qualquer acaso ganhasse de mim. Ele nunca ganhou. Talvez eu devesse ter esperado mais? Talvez você não devesse ter retirado o isqueiro da minha mão assim tão rápido. Eu queria achar que você detestava a ideia de que eu chegava tão perto de machucar a mim mesma, que em algum momento eu o faria e você teria que ver, mas não era isso, era? Era só que você nunca ia fazer o mesmo.

Eu tenho meu próprio isqueiro, você sabe, você sempre soube.

Me distrai da falta do gosto de cigarros.

Socorro

-Você me mandou uma mensagem na garrafa

-…

-Foi um pouco atrasada, eu não me importo mais, sabe? eu não ligo muito se o seu barco afundou, você foi parar em uma ilha deserta, piratas te estupraram ou o que quer que seja. Eu não me importo mais, no fundo eu não sei se algum dia eu me importei

– …

-Eu sei que você acha que eu te salvei ou coisa assim, que eu entrei de cabeça em algo horrível e incômodo só porque eu precisava te trazer para a superfície, mas a verdade é que eu te escolhi porque você não cabia nos sapatos que eu tinha.

-…

-Não é que eles sejam grandes demais, é só que as vezes os pés tem formas esquisitas sabe? um dedo um pouco torto, um dedão comprido demais ou um calo bem perto daquele osso do calcanhar que pode ser um pouco mais saltado. E você era tão diferente daquele que eu tinha que não adiantava só apertar um pouco aqui, esperar o sapato lacear um pouco ali, não servia, não ia caber. Nunca ia caber e eu te trouxe por isso.

-…

-Eu sei que você não percebeu, mas a culpa é um pouco sua não? quer dizer, é fácil perceber quando sapatos absolutamente não servem em você, você sabia disso não sabia? que não cabia ali.

-…

-Sabe o que é pior? essa garrafa era usada. Não adianta você pedir socorro em uma garrafa tão suja do resto de rum dos outros, simplesmente não sobrou nada ali que eu possa ler. Além disso, ela simplesmente cheira a outro tempo, outro lugar, outra vida, aquela onde eu comprei os sapatos nos quais você não cabe. E não, eu não quero me desfazer deles, eu gosto deles, assim como eu gosto da garrafa. E eu gosto do cheiro velho dela, de rum estragado, que ficou um pouco doce demais e agora nós não conseguimos beber.

-…

-Não importa que ninguém nunca mais vá beber, a garrafa não é sua, assim como os sapatos. É tão óbvio que você tente mandar seu último pedido de socorro em uma garrafa que cheira tão inseparavelmente a outra pessoa.

-…

-Acontece que eu nunca fui sua.

Soma

“‘But I don’t want confort. I want God, I want poetry, I want real danger, I want freedom, I want goodnes, I want sin.’

‘In fact ‘ said Mustapha Mond ‘ you’re claiming the right to be unhappy.’

‘All right then,’ said the Savage defiantly, ‘I’m claiming the right to be unhappy'”

E então eu estou toda bonitinha cumprindo minhas resoluções de ano novo: 2012 tem 10 dias e eu já li 3 livros, um deles foi Admirável Mundo Novo.

Sim, só hoje. No meu colégio se falava muito nele, mas por algum motivo eu fui deixando pra lá enquanto lia Simone de Beauvoir, Sylvia Plath, Marguerite Duras e todas as outras meninas angustiadas que eu gostava naquela época. Depois veio 1984 e eu gostei tanto e fiquei tão mal ao mesmo tempo que eu tive medo do desapontamento que necessariamente viria de um livro que ia ser comparado com outro que me deixou sem comer durante dois dias. Enfim, um dia eu comprei uma edição em inglês só porque era bonita e depois de ter enfiado 3 bestsellers na mala das férias decidi que seria o bom contraponto para começar a voltar.

E então o livro me desapontou de fato. Sim, o Huxley é assustadoramente profético, sim o discurso do Mustapha Mond para o John é algo incrível, mas falta desespero na escrita do Huxley e minha alma é dramática. Mas não é nada disso que vale eu vir escrever.

O que me chamou a atenção é que por sexo de menos ou demais, tanto em Brave New World como em 1984 o amor é uma coisa perigosa. Qualquer amor, qualquer laço ou envolvimento. Em Admirável Mundo Novo ninguém tem pais, em 1984 as crianças denunciam os próprios. Em ambos os casos se apaixonar por alguém é motivo para ser punido.

Eu não tenho vontade de responder o porque. Minha resposta imediata é que na relação com alguém você é único, especial. A única pessoa a saber isso ou aquilo, a conhecer esse ou aquele gesto, não importa, amar alguém nos torna indivíduos (quer dizer, há controvérsias, mas to otimista hoje) e indivíduos são aquilo que as distopias mais temem. Pensamento livre, individualidade, liberdade os dois autores parecem concordar: são perigosos e de um jeito ou de outro nós vamos perder.

 

(se interessa há alguém eu já peguei um Philip Roth e tenho um Amos Óz e “Liberdade” na pilha)

 

A uma passante

“Uma senhora loira  e sorridente, aparentemente desalinhada de amor, apareceu entre as persianas francesas. Por um instante se olharam no olhos, mas tudo se limitou a esse fugidio raio de luz entre duas pessoas que se tocam com o olhar , pressentem um leve tremor em seus respectivos campos magnéticos, e cada um segue seu caminho. As premonições nem sempre se cumprem.”

(Pedro Juan Gutiérrez, em “O Rei de Havana”)

Esse trecho partiu meu coração com força.

Por que eu não estudo algo mais simples?

Adoro explicar o tema do meu mestrado para as pessoas (diálogo já tido várias vezes com pessoas que ao menos sabe quem é Bergman):

-Ah, mas sobre o que é sua pesquisa?

-Resumindo, é o silêncio de deus em Bergman

-Como assim silêncio de deus?

-É que nos filmes do Bergman, não é que deus não existe, mas ele parece ter abandonado o mundo, não responde, não atende, não ajuda, não controla, não é um deus “ao alcance da mão” como a gente as vezes pensa

-Mas por que, como assim?

-Sei lá, ele criou o mundo, mas depois largou ele aqui pra funcionar sozinho.

-Como assim? Por que?

-Por que sim, não sei, porque o homem é pequeno e deus é imenso, porque ele quis, sei lá

-Por que ele quis?

-É, ele é deus, pode querer qualquer coisa

-Mas se ele criou a humanidade não faz sentido largar ela aqui

-Não precisa fazer, ele faz o que ele quer, ele é deus

-Mas ele não tem uma responsabilidade com que criou?

-Ele não tem responsabilidade nenhuma com nada, é deus e pronto

-Mas…

-Ele é deus porra!

E assim, para o senhor Ingmar Bergman só falta deus dizer que meu nome é Zé Pequeno porra, virar para o lado e dormir

Na real, minha pesquisa é sobre o sentido da existência e as implicações morais frente a esse deus silencioso e a iminência da morte, mas isso dá mais trabalho ainda de explicar, mais trabalho até do que explicar que raios é ciências da religião (em geral, se eu quero encurtar a conversa, falo que meu mestrado é na filosofia)

This is so bad it’s gone past good and back to bad again.

Vocês falam de mim, mas esse blog nunca foi tão visitado, linkado, curtido e retuitado quanto no último prêmio Björk. Deve ser porque as duas coisas que eu mais faço nessa vida (e são o objetivo final de existência desse blog) são escrever e falar mal das coisas. Não que eu faça qualquer uma das duas bem, não é isso que estou falando, mas como algumas pessoas roem unhas, são pontuais, ou naturalmente organizadas (eu não faço nada disso), eu escrevo e falo mal das coisas.

A Carol as vezes me chama de Enid e eu gosto de dizer pra ela que “I miss hanging out and hatting stuff together” porque foi basicamente tudo que a gente fez em 4 anos de faculdade de cinema, ok, as vezes a gente via conceito onde não tinha para trabalhos de vídeo arte ou tirava 10 com o trabalho de realidade brasileira mais vagabundo jamais visto, mas no geral a gente se entediava e odiava as coisas.

Não é de propósito, eu não acho legal odiar tudo o tempo todo, eu me sinto melhor quando gosto das coisas e por incrível que pareça eu gostaria que todo mundo fosse a premiações vestida assim (ok talvez não). Mas não consigo evitar, talvez seja o sangue russo e tal, que só é feliz a noite, no frio, com vodca. Infelizmente faz sol, calor e eu estou sóbria na maior parte do tempo (ainda que parte das pessoas que me seguem no twitter possam discordar disso) e sendo assim eu falo mal das pessoas do meu lado na rua, de gente famosa ganhando prêmios, da banda x, do filme y, daquele livro, daquela balada, de metade da minha sala do mestrado, daquele cara… Sabe, eu gostaria muito de ser uma Zooey Deschanel toda fofa e vestida de bombom cor-de-rosa, mas não rolou, em algum ponto da coisa chamada constituição de personalidade eu acabei amarga, chata e levemente insuportável, pra minha sorte, com um pouco de capacidade de ser engraçada.

Escrever e falar mal das coisas, é o que eu faço aqui, na vida e gostaria muito de um dia ganhar dinheiro pra fazer. Enquanto isso vou planejar drinking game e votação de prêmio Björk ao vivo aqui em casa no dia do Oscar.

(esse post é programado, quando ele entrar eu vou estar num bar, tomando cerveja e muito provavelmente falando mal de alguma coisa)