A esteira e a consciência da fraude

Eu tenho o hábito de me sentir uma fraude. Eu tenho certeza absoluta que meu orientador tinha colocado maconha no cachimbo no dia que me convidou pro mestrado e que eu não sei nada de Bergman, muito menos do silêncio de Deus (aprendi que Deus vai com maiúscula porque é nome próprio tá? nada a ver com crenças, além de fé na gramática). Também acho que todas as pessoas que já me deram um emprego tinham acabado de tomar um pé na bunda e estavam naqueles dias de “foda-se o mundo, vou contratar essa menina aí mesmo”. Juro que todos os caras que ficaram comigo, sobretudo mais de uma vez, sobretudo por alguns meses, tem seríssimos problemas de julgamento, ou só são meio lerdos mesmo, ou perturbados, vai saber.

Mas nunca, nunca na minha vida me sinto tão uma fraude como quando desço da esteira da academia.

Vejam, eu odeio esteira, me sinto um hamster, mas é preciso fazer exercício porque genética é um negócio filho da puta. A família da minha mãe é polaca, a do meu pai é russa, eu poderia tranquilamente ter nascido alta, magra e com pernas de Maria Sharapova, mas nãaaaaaao, eu tenho 1,57 e seria modelo no padrão de beleza século XIX. Tenho boas pernas pelo menos, admito isso. O que me consola é que genética polonesa é tão, mas tão filha da puta que até a Scarlett Johansson, que é metade dinamarquesa, é pequena e tem essa tendência maravilhosa a bracinhos gordos de polaca.

Enfim.

Quando eu saio da esteira, principalmente em um dia como hoje, principalmente porque otimizo meu tempo assistindo séries enquanto faço cosplay de hamster eu me sinto uma fraude absoluta porque eu nunca me sinto tão vestindo a fantasia de “jovem mulher bem resolvida”. Vejam, hoje eu tive uma aula de literatura judaica, fui para análise, tive aula de russo, escrevi dois textos e então me arrastei para a esteira. Eu juro que me sinto aquele clichê da propaganda de absorvente: minha vida é corrida, mas eu aprendi a fazer mil coisas ao mesmo tempo sem perder o charme, eu falo inglês, francês, espanhol, alemão, russo E faço exercício. Olhem para a mim, a super mulher que ainda vai chegar em casa e cozinhar janta e depilar e comprar calcinhas sexys e bla, bla, bla.

Eu não quero ser essa mulher.

Eu não quero comprar comidas orgânicas. Não quero parar de fumar. Quero chegar em casa, abrir alguma garrafa de vinho barato e comer chocolate. Saio da esteira e tenho até vontade de jantar miojo só para não ser esse clichê de pessoa moderna-saudável-otimista-sustentável. Nada contra ser sustentável, eu estudei em escola de gente hippie, sou incapaz de não separar o lixo.

Porque é isso, no fundo nem eu vivo jogada no chão de casa enchendo a cara de whisky, nem dou conta do mundo, da vida, do cosmos e tudo mais. Acho engraçado quando ouço alguém dizer coisas como “mulher independente bem resolvida poderosa o que quer que seja” porque eu não me sinto nada disso e nem quero caber nessa ideia. Não quero trabalhar doze horas por dia e ter tempo de fazer as unhas, pelo amor de deus eu espero nunca na vida ter que trabalhar doze horas por dia.

Sabe, se eu fosse qualquer tipo de ser humano bem resolvido eu estaria transformando isso em um ensaio razoavelmente longo e bem escrito ao invés de estar postando em um blog. Aliás, como eu tenho escrito aqui hein? Ou então estaria terminando aquele ensaio que nunca vai ver a luz do dia sobre o como eu sou absolutamente neurótica e saí stalkeando pessoas. Mentira, eu nunca stalkeio ninguém.

Quando eu saio da esteira eu me sinto uma pessoa que chegaria em casa e arrumaria a bagunça, em vez de ficar vendo Bored to Death e escrevendo em um blog. Mas eu não sou essa pessoa, eu odeio aquela esteira, mas sabe, eu bebo demais e não como tão bem assim e convém não morrer aos 40. Porque no fundo eu nem ligo de não pesar 40 kg, ter 1,80 de altura ou as pernas da Maria Sharapova. O que eu gostaria sim era de jogar tênis como ela, se eu jogasse tênis como ela, então minha carreira de tenista adolescente teria sido mais frutífera, talvez eu tivesse ganhado Wimbledon aos 18 anos e hoje, aos 24, idosa e com o ombro arrebentado, estaria confortavelmente aposentada. Mas a verdade é que quando eu consigo, por um minuto que seja, sair desse lugar de autodepreciação e insegurança maníaca onde eu costumo ficar eu percebo que a genética foi bem generosa comigo, afinal. A genética e a cabeleireira maravilhosa que me deixa ruiva.

O problema quando eu saio da esteira é a sensação de ter sido responsável e ter feito algo que odeio apenas para ser razoavelmente responsável. Mas não é exatamente isso? Ser razoavelmente responsável? Fazer esteira porque come chocolates, yoga porque fuma, não caber em uma calça 38, mas ter um cabelo lindo, não arrumar a casa, mas aprender russo. Ser meio desastre, meio funcional. Sim. Mas não sei, deve ser a endorfina que me faz sair de lá me sentindo uma pessoa que não quero ser. Uma pessoa que dá conta de tudo, até de ser magra.

Esse texto começou bem, me perdi no caminho, acho que vou realmente transformar em um ensaio longo que eu vou levar 20 mil anos para escrever. Igual aquele do stalking que eu nunca fiz.

(aliás, o título desse texto tá horrível, por favor sugiram outros, estamos inaugurando a interatividade no blog, tipo teatro oficina e tal, você aí da plateia, sobe aqui no palco pra tirar a roupa)

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