Seria melhor ser sereia do que humana

There’s always a siren singing you to shipwreck

Então você perde a cabeça. Você sabia que ia acontecer, você sentiu aquilo vir como a maré que sobe. Engole primeiro seus pés, depois seus joelhos e então você não pode mais voltar para o hotel e precisa pedir ajuda para um local e acha que vai ser estuprada no meio do nada (história real).

Você percebe que está vindo na terceira noite seguida em que bebe meia garrafa de vinho sozinha. Percebe quando seus cigarros acabam mais rápido. Quando não consegue controlar a velocidade do seu cérebro.

Uma doença é uma doença como outra qualquer, não há nada de especialmente charmoso em um cérebro desarranjado. Então lido com ela como com a sinusite, a bronquite, minhas 400 mil alergias. Para lidar com instabilidade emocional você precisa de um plano. Espere sua cabeça voltar ao lugar (ou vá buscá-la na Bósnia, tanto faz), respire fundo, faça uma caneca de chá verde (é preciso calma e presença de espírito) e analise sua vida.

Você é frágil demais para tudo que vinha absorvendo. Como uma árvore muito magrinha exposta ao excesso de vento. Você se deixou se apaixonar de novo, quando deu errado você saiu por aí levando para cama um e outro cara interessantes. Cabe muito pouca coisa dentro de você e então essa paixão residual saiu grudando neles que não tinham nada a ver com isso. Você precisa de tempo para por para fora o que não cabe, de livros, cadernos, precisa chorar abraçada nos gatos. Mas havia bares demais, festas demais, gente demais porque você não queria colocar nada pra fora, queria guardar tudo aquilo dentro de você.

Quis guardar tanto que saiu de si mesma.

O dia que você viu seu corpo fazendo coisas onde sua mente não estava foi assustador. Então analise por onde foi que saiu de você mesma.

Você desacelera então. Corta o café e a gastrite diminui, não acorda mais de madrugada para vomitar. Toma os remédios para dormir, dorme 7 horas por noite. Diminui os cigarros. Não bebe mais sozinha em casa. Tenta não aceitar convites todos os dias da semana. Mantém um diário mesmo nos dias que acha que não precisa. Faz ballet. Se desloca de bicicleta. Disseram que endorfinas fariam bem. Come melhor. Se afasta daquele homem interessante mas que você sente que te custará algo que não pode dar. Volta a cozinhar. Você se sente mais centrada, mais equilibrada, consegue sentir a estabilidade nos seus pés.

O problema é o tédio.

O problema da existência é que ela é insustentável. Para ter graça você precisa chegar perto demais do que te desequilibra, para manter o centro a sensação é de que não é você e isso não é o que você quer do seu tempo no mundo.

Se brincar com fogo é quem você é, é possível parar antes de se queimar? Eu acendo isqueiros e fico aproximando meu dedo do fogo, levando-o mais perto possível, sentindo o calor aumentar e o início da lambida da chama. É um jogo de intuição. Me lembro de estar deitada de bruços na cama de outra pessoa, brincando com o isqueiro de outra pessoa, que deslizava a mão pelo fim das minhas costas enquanto perguntava se aquilo era só uma maneira de me machucar sem me sentir culpada por isso. Eu não sei, respondi, talvez, mas eu não me importaria tanto se me queimasse, eu gosto de um pouco de dor.

Mas quanta dor é muita dor? Quão perto do fogo é perto demais? O quanto eu posso aguentar sem me perder por completo? Qual o risco?

Eu nunca escolhi ficar do lado seguro. Nunca acreditei na teoria de que é melhor não arriscar, de que vale mais a pena ficar em um meio termo morno do que acabar se descabelando de dor. Eu me irrito, me incomodo, fico impaciente e intratável quando a vida  se torna só uma sucessão de dias sem nada de novo. Eu sempre quis tentar de tudo, eu quis aceitar todas as chances que apareciam na minha frente.

Eu cruzei Cuba de carro. Eu pulei de paraglider. Eu me joguei de um barranco na Turquia. Eu me lembro até hoje do primeiro copo de vodca que eu decidi provar, da primeira vez que fiquei bêbada. Eu transei com mais de uma pessoa só para saber como era, só para fazer, só porque sim. Porque, por mais paradoxal que pareça, eu tenho essa vontade incansável de ir pro mundo e provar tudo que eu puder. Eu tenho um desapego enorme a vida, ao tempo da vida, ao fato de que ela vai acabar e ao mesmo tempo um desejo de experimentá-la em todas as suas possibilidades antes de decidir ir embora.

Mas como fazer isso sem me perder? Como fazer isso sabendo que eu não sou forte o suficiente para me deixar sentir tudo?

O problema é que qualquer escolha tem em si o caminho que te leva pro desastre. Se eu escolho ir para o mundo com a fome e a intensidade quase selvagem com que quero ir, eu quebro. Se decido me recolher, se fecho as portas, se tento achar um centro o tédio entra pelas minhas veias, corrói meus ossos e me mata, aos poucos. Me enlouquece tanto quanto o desastre. E o meio termo parece uma ideia linda que eu nunca saberei qual é.

Existir é absolutamente insustentável porque é sempre impossível saber qual música é uma sereia te conduzindo para o naufrágio. Porque é como levar um enorme navio em águas revoltas e cheias de pedra. É isso ou nunca deixar o porto e eu não sei como fazer essa escolha.

Mas é preciso fazer escolhas, é preciso viver e é preciso arriscar seguir sereias.

1 comentário

  1. ‘Para ter graça você precisa chegar perto demais do que te desequilibra, para manter o centro a sensação é de que não é você e isso não é o que você quer do seu tempo no mundo’. 🙂

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