Na estante

“Minha doce Norazinha putazinha…”

Eu acho interessante, engraçado, como às vezes parece que coincidentemente as coisas se acumulam dizendo a mesma coisa. Um livro, um filme, uma série. Como se todas as escolhas que você faz secretamente se arranjassem para reforçar o mesmo tema, a mesma ideia infiltrada. Ou talvez, seja apenas eu que vejo o que quero ver em repetidos lugares.

Sempre me lembro daquela aula de filosofia, de Freud, de aprender que a paranoia é o oposto do sentimento da ausência de sentido. Na paranoia tudo tem sentido. A paranoia é a resposta do ego (talvez fosse uma aula de psicologia?) que não consegue encarar de frente a falta de sentido e a aleatoriedade do mundo. Na paranoia tudo tem sentido mas ele é sempre contra você.

Divago. Paranoia não tem a ver com esse post, embora essa frase tenha grudado em mim de uma forma que cada vez que ensaio ver uma correlação em eventos que sei que não tem qualquer conexão me paro e digo não, paranoia não. Meu rol de distúrbios diagnosticados já é suficiente sem ela e eu acho neurose uma palavra mais sonora. Saia daqui otimismo, não posso pensar que algo a noite vai dar certo só porque deu de manhã, fique longe de mim.

Mas enfim, não, paranoia não é o tópico. O tópico começa pelo acúmulo coincidente do mesmo tema.

Eu li hoje as Cartas a Nora, do James Joyce. Acho Joyce algo de maravilhoso porque quando você acha que está no domínio da extrema intelectualidade, do experimento formal hiper racionalizado, da linguagem pura que é dissociada da experiência vivida cotidiana, ele vai e te joga um “de sentir teus lábios chupando-me de te foder entre as maminhas”. Você começa Ulysses achando que jamais vai conseguir ler aquela coisa, que aquilo é pura especulação filosófica avançadíssima e de repente percebe que é só uma gente batendo punheta na praia. As cartas começam parecendo declarações repetidas de um amor ideal, do amor denso, intoxicante, mas etéreo e de repente, na virada de uma página, é tudo sobre o cu da Nora e de como ela tem a fantasia de cagar na frente dele.

Eu gosto desse vai e volta entre o extremo intelectual e fisicalidade bruta. Mas eu gosto mais de como Joyce ancora no corpo feminino esse desejo cru. A Nora que nunca vemos falar, como a Molly, como a personagem em Os Mortos, são seres cujo desejo é forte, pulsante, personagens tomadas pela dimensão física do sexo. E é tão raro a literatura, ou mesmo a história, nos contar de mulheres dominadas pelo próprio desejo.

Homens há vários. Desde Marco Antônio há histórias de homens que colocaram tudo a perder pelo desejo carnal, pela impossibilidade de controlar as ondas de sangue que descem pro pinto. De Tolstoi a Philip Roth temos homens que se arruinam por serem incapazes de resistir a pernas que se abrem na frente deles. Parece razoável, não parece uma construção de personagem clichê, mas muito mais a exploração de um arquétipo, a possibilidade de resistir ao desejo é uma questão tão fundamental quanto a aceitação da mortalidade.

Quantas mulheres a literatura conta que se arruinaram por desejo? Lady Chatterley. E não consigo lembrar de mais nenhuma. Emma Bovary se arruina pelo ideal romântico, pela paixão como um todo, não só pelo sexo. As Brontë jamais colocariam em palavras assim, mas desconfio que Catherine se arraste para Heathcliff por desejo carnal, assim como o apelo de Mr. Rochester é tão sexual que a única escolha possível para vivê-lo em um filme é Michael Fassbender. Ainda assim, Jane Eyre embora magnetizada mantém o domínio sobre si mesma, o desejo não a engole como aos personagens de Henry Miller ou Humbert Humbert. Chip, em The Corrections, é engolido pelo desejo, o Caçula, em Dois Irmãos, o personagem de Marcello Mastroiani em 8 1/2, Portnoy, o protagonista de O Museu da Inocência… todos eles.

As mulheres padecem de amor. Margarida, Aida, Sonia, Marianne, etc, etc. É preciso salvar Tolstoi, Anna Karenina é tomada de algo tão sentimental quanto físico. Ainda assim, não é por sexo que ela se joga embaixo de um trem. E acontece que ela poderia.

As cartas de Joyce se acumularam com um episódio de Game of Thrones em que Varys diz “quando eu vi o que o desejo faz com as pessoas, eu fiquei feliz por não tomar parte dele”. Desejo, mais do que sexo, o momento anterior ao sexo, é possivelmente uma das forças mais poderosas do mundo. É algo que toma, engole, enlouquece, controla o sangue o corpo e é capaz sim de fazer com que alguém se destrua. Mas nas histórias isso só acontece com os homens.

Me incomoda que as mulheres sejam colocadas nesse local em que não é que são capazes de dominar o próprio desejo, mas que não chegam a senti-lo com essa intensidade enlouquecedora. E talvez seja o desejo de mais coisas, o desejo como essa força incontrolável de querer algo que te faz ignorar o custo. Fausto, é o grande exemplo. Lady Macbeth talvez seja a única mulher que deseja com a força de Fausto, ainda assim, ela é mais prudente. Não consigo lembrar de uma história verdadeira de alguma mulher famosa que era publicamente enlouquecida por algum homem. Mas acontece.

E é interessante o tamanho do gênio e da complexidade da estrutura mental do Joyce. As mulheres dele estão fora da curva, elas são depositório de uma sensualidade poderosa, enlouquecida sim. Gosto de como ao escrever para Nora sobre o que quer fazer, ele chame aquilo de sujo, de feio sem que isso acarrete necessariamente em errado. É sujo porque envolve merda, semens, sangue, fluídos, cheiros ruins, gosmas. Amo quando o Pedro-Juan Gutierrez fala que sexo não é pra quem é higiênico. Chamar de higiênico, de limpo, de belo exige que ele caiba em um conjunto de valores do funcional, do bem-organizado, do dirigível. Ele não deveria caber ali, não sempre.

Quando Joyce coloca mulheres absolutamente sexuais e chama suas fantasias de feias e sujas, ele mantém o desejo como esse algo mágico, obscuro, poderoso por escapar a lógica racional cotidiana. Ele se recusa a ignorar a sujeira, ele reconhece a importância do tabu até um certo limite (como o medo, há o medo que impulsiona e o paralisador, dá pra importar a mesma lógica), reconhece a força de dar algo de porco, de animal a Molly Bloom. As mulheres de Joyce perderiam o controle por desejo, em uma narrativa que me incomoda que não aconteça mais vezes.

 

Texto número 212909 sobre voltar para casa

Estou lendo aquele livro do Zambra chamado Formas de Voltar Para Casa. Acho engraçado que depois que comecei a conviver com “gente dos livros” tem umas épocas em que todo mundo parece estar lendo a mesma coisa, em geral algo razoavelmente curto e que acabou de ser lançado e que lemos por curiosidade, recomendação, vontade de falar sobre o livro com alguém.

Tenho na lista os outros dois do Zambra, mas por já ter uma pilha de livros emprestados que preciso devolver, vinha adiando o pedido para as pessoas que sei que os tem. Mas não pude escapar de um livro com esse título. Em primeiro lugar porque é um belo título e em segundo porque não sei voltar para casa e quero desesperadamente aprender.

Há uma frase, que fica bem no topo de uma página e que diz “aprender a contar sua história como se não doesse”. Aprender a contar sua história como se ela fosse mais uma, como se fosse igual a do próximo. Todo mundo dói, todas as famílias tem problemas, toda criança tem traumas. Imagino que tudo isso seja verdade, mas também imagino que algumas famílias sejam piores que as outras e algumas pessoas precisem aprender a contar sua história como se não doesse.

Famílias felizes se parecem. Cada família infeliz é infeliz a sua própria maneira.

A literatura é fascinada com as famílias infelizes. O cinema também. Talvez porque famílias felizes se pareçam. A história de uma família feliz é a história de muitas famílias felizes e dia desses li um jovem escritor em um belo texto no jornal dizer que literatura se faz de sangue, morte e tragédia. Ninguém quer saber do que dar certo. Ninguém quer saber das famílias felizes.

Formas de Voltar Para Casa é, de alguma forma, a história de uma família feliz. Ou a história de como não se conta a história de uma família feliz, mas da família infeliz da casa ao lado. É a história da culpa porque sua família é feliz. Porque na sua família não há mortes, desaparecidos, torturados. E se surpreender porque alguém cuja história contem mortos, desaparecidos e torturados eventualmente te conta sobre tudo isso entre cafés do starbucks, como se nada fosse, como quem conta do playground que brincava na infância, como se não doesse.

Esses dias me peguei, entre um gole de mojito e uma batata frita, contando minha história como se nada fosse. Contando que aos cinco anos me perdi no Louvre e minha mãe levou mais de duas horas para perceber. Contando que casa sempre foi sinônimo de algo que era uma merda e até hoje eu tenho dificuldades para entender que não é. Com meu rosto apoiado na mão, do jeito que sei que faço quando estou muito atenta a alguma coisa, eu o ouvi contar a história dele, que talvez também doesse, mas que ele narrava como se não.

Fico me perguntando quantas vezes na vida fui beijada porque contei minha história como se não doesse e meu interlocutor achou que ela deveria sim doer. Me pergunto quantas vezes na vida fui beijada por dó, por puro carinho, como uma maneira de me agradecer por ter contado aquela história como se ela não doesse. Ou como uma forma de me dizer “calma, vai ficar tudo bem”.

Voltei hoje de manhã para a casa da minha mãe. Volto para ir embora. Entro no meu quarto e percebo que nada mudou desde que saí de casa, 8 anos atrás.

Pompeia é o lugar mais impressionante que já estive. Um dia falei aqui sobre Pompeia, Hiroshima e Ai Weiwei, tempo congelado e memória. Pompeia é impressionante porque ela não decaiu, não morreu como Éfesos, Machu Picchu, ou outras ruínas em que estive, ela simplesmente parou. Em um momento, o tempo congelou.

Me sinto um pouco assim ao entrar no meu quarto. Ali, em janeiro de 2006, o tempo parou. Os livros nas estantes são os mesmos, as fotos nas paredes são as mesmas. Fotos de gente que já não significa mais nada para mim e fotos de gente que ainda significa o mundo. Em uma foto somos tão novinhos, eu estou tão bronzeada, nossos rostos eram menos bonitos, ainda não haviam assumido os traços que assumiriam alguns anos depois.

Olho para foto e vemos que éramos, somos talvez, ambos, muito bonitos. Mas nos nove anos desde essa foto nossos rostos adquiriam um tipo diferente de beleza, nossos olhos se tornaram menos transparentes.

Mas naquele quarto o tempo parou. Naquele quarto meus cabelos batem no ombro e são um loiro escuro e cinzento, uso uma camiseta do Bikini Kill e abraço pessoas que não vejo já nem sei há quanto tempo.

É muito estranho voltar para casa.

Me pergunto por que nunca joguei fora essas fotos, por que minha mãe nunca reformou esse quarto. Vejo mais uma foto, minha prima aos treze anos em um vestido preto de renda, aquele ano em que vimos a guerra. Sento no chão e entendo que voltar para casa é como brincar de quebra-cabeças, que não retiro as fotos ou jogo fora aquele cachorrinho de pelúcia ridículo porque me contam minha própria história. Me contam como eu cheguei aqui. Como meu cabelo deixou de ser loiro de água suja para ser loiro dourado, loiro platinado, ruivo, loiro dourado outra vez; nos ombros, curto, longo, muito longo, muito curto, médio, longo.

Porque são as peças da história que eu conto casualmente enquanto examino o molho em um potinho e provo devagar com a batata frita. Como se aquele molho fosse algo que me importava mais do que o que eu estava dizendo. Peças da história que eu paro de contar para dizer “por que estou falando disso mesmo?”, me lembro e volto a falar de museus de Paris, você sabia que no Pompidou eles expõe filmes? Quase chorei de amor quando vi que tinham La Jetée.

 

 

Bashevis Singer e a estranha permanência das coisas

Há alguns dias eu comecei a ler os contos do Bashevis Singer, as tais “collected stories” no original que não é original e que saiu aqui em uma daquelas edições listradas da Companhia,  com uma tradução que me faz sofrer. Eu estou só no sétimo conto de 47 e me parece cedo para vir falar sobre ele, mas já nesses contos algo me chamou atenção: o ponto do Bashevis Singer é a permanência.

Isso me surpreendeu enormemente porque toda literatura judaica, sobretudo toda literatura idiche, pós-haskalá, ainda mais pós segunda guerra, me parecia a literatura da impermanência, das mudanças, da perda das raízes. Não que eu seja a grande especialista em literatura judaica, inclusive larguei no meio uma matéria sobre isso, mas eu li uma quantidade razoável dela. Só nesse ano eu li Jó, do Joseph Roth, um livro sobre o esfacelamento do mundo judaico tradicional e  As Aventuras de Augie March, do Saul Bellow, que começa com um judeu afirmando “sou um americano”.

Mesmo o Sholem Aleichem, o tema dele parece ser a consciência de que aquele mundo, aquele universo isolado e hermético de aldeiazinhas russas estava morrendo, é dele, afinal, a peça que inspirou O Violinista no Telhado. E tem aquele conto maravilhoso, que eu não sei como ficou em português, mas em inglês se chama “On Account of a Hat”, sobre o momento em que um judeu percebe que entre ele e um oficial russo não há nada tão essencialmente distinto.

Até o Philip Roth, que você supõe já superou essa coisa toda, o homem já é a segunda geração nascida nos Estados Unidos e tal (acho curioso: Philip Roth tem a idade dos meus avós, mas é a segunda geração nascida lá, a primeira “não filha de imigrantes” que no caso da minha família, sou eu) tá lá em Portnoy’s Complaint com um moço sofrendo porque bate punheta e não consegue ser um bom menino judeu, quer ser um bom menino judeu, mas é bem mais legal pegar aquela loira com cara de vagabunda e bater punheta. (é óbvio que não pode bons meninos judeus baterem punheta, insira mãe judia aqui fazendo comentário constrangedor sobre como a coisa vai “afinar”)

Mas não pro Bashevis Singer. Seguindo a tradicional tendência a obsessão, ele conta sempre a mesma história, sobre o mesmo lugar, que pode se chamar Frampol ou Kreshev, mas é sempre uma vila polonesa, igual, todas iguais, como a que ele nasceu, a que meus avós nasceram, a que o pai do Art Spiegelman nasceu, etc, etc. E a história é sempre, de alguma maneira, a mesma.

É a história de como o pecado e a transgressão serão punidos e de como a permanência traz felicidade. Alguns desses contos são narrados por um demônio que consegue de fato corromper sua vítima, mas ela é sempre punida. Outras falam de alguém que teve a chance de mudar tudo, esquecer o passado e as raízes e se viu angustiado até o momento em que retomou aquilo que sempre fez, que sua família sempre fez, que séculos e séculos de antepassados sempre fizeram.

Me surpreende muitissimo esse  homem que morreu em 1991, que viu a segunda guerra, que saiu da Polônia, foi morar nos Estados Unidos, escrevendo sobre um mundo em que a corrupção é punida, os valores são estáveis e não há fluidez, incapacidade de crer nos valores ou angústia pela identidade. Todos sabem seu lugar, aceitam a punição por seu pecado, enxergam-se como parte de um mundo que funciona assim, sempre funcionou. Acho que tudo isso faz sentido quando se pensa que ele escreveu em ídiche a vida toda.

Eu não acho que um dia li um autor moderno tão preocupado em narrar as coisas que ficam e, mais que isso, crendo nas coisas que ficam. Porque algumas coisas ficam. Quando eu leio esse livro eu reconheço os ditados, boa parte deles eu sei em ídiche, eu sinto o cheiro das comidas, eu lembro da minha tia-avó brigando comigo porque com essa mania de cemitérios eu devo ter um dybbuk. Algumas coisas ficam, basta pegar um filme de dois anos atrás dos irmãos Coen. Mas ninguém se lembra de falar delas em frente a angústia do que não ficou, da identidade que não se tem.

Bashevis Singer é uma voz de um outro mundo, morto muito antes dele escrever. Ele narra coisas que soam como lendas, não por causa dos golens, demônios e espíritos maus, mas porque tudo é permanente. Eu nunca cheguei a sonhar com um mundo de permanência e nenhum escritor nunca soou tão próximo, em uma certa camada, e tão abissalmente distante de mim.

(Em tempo, é Chanukah, hoje é a sexta noite e esse livro, mais as pessoas que vejo carregando comida na rua me fazem pensar se latkes sobrevivem no correio entre Rio de Janeiro e São Paulo)

Fins (quase) reais

Há um tempo atrás, talvez um mês ou um pouco mais, eu li um livro da Sophie Calle chamado Histórias Reais. Ou, como ela mesma diz no autógrafo que me deu, quase reais. São fragmentos muito curtos, muito secos, de pequenos traumas cotidianos, de corações partidos.

Eu tenho essa teoria sobre os corações partidos. O clichê geral é que a dor é essa coisa descontrolada, esse monstro de sete cabeças que escapa dos seus olhos e das suas unhas e você se corta e se joga no chão e grita e se contorce e faz drama e que você parece tão quieta aí no canto não pode estar tão mal. Não é verdade, a minha teoria (ou talvez a minha hipótese baseada na empiria) é que corações se partem em silêncio. Quando eles se partem mesmo, de verdade, a fundo, muito fundo, a dor retira todo seu ar e você não pode gritar, às vezes, não pode nem chorar.

Dizem que se você perde uma perna ou braço a dor é tanta que seu corpo para de sentir, porque se sentisse você morreria, é tanta dor que ela já deixa de servir como qualquer mecanismo de defesa, é tanta dor que é inútil. Sinto que esse livro da Sophie Calle é um pouco assim. Ele tem uma dor imensa, mas muda, quieta, mínima porque se ela realmente desse vazão a toda essa dor acabaria morrendo.

Quando li o livro anotei que deveria escrever um texto sobre o fragmento chamado Casamento dos Sonhos. Essa palavra ficou escrita em um post-it na minha escrivaninha esse tempo todo eu a via todos os dias e tinha vergonha de mim mesma por te-la escrito. É claro que o texto não é sobre um casamento dos sonhos, não é nem sequer sobre um casamento, é sobre um coração partido. Mas a palavra ali me dava arrepios. Tenho uma amiga que tem dito “amor” e “apaixonada” muitas vezes e minha vontade é bater na madeira sai daqui coisa ruim aquele que não deve ser nomeado. Algo assim. Virei velhinha de igreja que não pode falar “demônio”.

(válido lembrar que no judaísmo não se pode é pronunciar o nome de deus. Sai daqui parte do meu cérebro que resolveu lembrar disso, fora, xô, esse texto não te pertence).

Na verdade virei uma cínica do inferno. Como se eu não fosse antes.

Esse texto não é sobre um Casamento dos Sonhos, é claro, é  sobre como a Sophie Calle desejou se casar no aeroporto com um homem que nunca mais iria voltar. Eu sou tão óbvia às vezes que me dá até ânsia. Eu sou tão óbvia, mas tão óbvia que só pude mesmo rir da minha cara. O que Sophie desejava era casar-se com um homem no aeroporto, deixar que ele fosse, dar uma festa sem ele e voltar para casa sozinha. O casamento era um adeus cerimonializado, como um velório. Me pergunto como cerimonializamos tanto o início de relações, mas não o fim? Eu adoraria ter um velório para os meus relacionamentos, enterrar uma caixinha com as coisas que ficaram, fazer kadish e não poder sair de casa por uma semana, cobrir os espelhos e só usar preto. Cobrir os espelhos seria bastante útil, eu acho.

Isadora, você nunca ia usar nada além de preto, nem nunca mais sair de casa. Ha Ha Ha, essa piada já perdeu a graça.

Eu me lembro da data de início da maior parte dos relacionamentos relativamente significativos que tive, mas não me lembro do fim. Bom, teve um que durou exatos 365 dias então ficou fácil, mas, tirando esse, não me lembro. Gostaria de lembrar, gostaria que fins fossem tão exatos, marcados e limpos quanto inícios. Algo começou ali, você pode não saber bem o que é, como é, mas começou. Quando aquilo termina? Que me importa saber quando começa? Quero saber quando termina. Quando deixo de receber emails, quando deixo de querer contar o que me aconteceu ou comentar um livro, quando quebramos o laço e viramos estranhos.

Fins deixam ranço. Deixam uma memória no ar, no corpo. O quanto é apropriado encostar naquele cara com quem você não exatamente terminou, só deixou de ver? A resposta deveria ser: absolutamente não encoste, porque você o faz e seu corpo esquece, vai quase sozinho e o dele responde mesmo que ele não queira, você nem sabe se quer na verdade, nada disso importa muito exceto o maldito ranço de tensão sexual que ficou entre vocês. E porque aquilo nunca teve um fim limpo você não sabe o como se sente, o quão estúpida se sente, se deveria se sentir estúpida, se parece a menina idiota obcecada, mas é só esse caralho de eletricidade, onde desliga? A essa altura você nem quer mais desligar, se for só isso mesmo, por que não?

Até porque não, não desliga, infelizmente.

Querida Sophie Calle não basta se casar no aeroporto. Não acaba porque você decidiu que acaba. Não se pode acabar, recolher as xícaras, limpar a mesa, apagar a luz e não deixar nada lá. Há um outro fragmento em que você diz que um homem lhe disse que você comia como uma porca, você mal se lembra dele, mas ele está sempre lá, sentado a sua mesa. Achei essa frase tão genial! Uma vez um homem me disse que eu andava como um elefante, eu mandei ele embora há muito tempo e já quase não me lembro do rosto dele, a voz dele há muito esqueci, mas ele está todas as terças e quintas sentado no chão da minha aula de ballet.

Quando voltei ao fragmento para escrever esse texto, percebi que ele se chamava Casamento de Sonho e não Casamento dos Sonhos. Agora sim faz sentido.

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Todo desapego de se ter um reader

É muito desapego ter um reader. Eu tenho um kobo, comprei mês passado porque decidi parar de entupir meu não tão grande apartamento com livros: eu já tenho duas estantes abarrotadas, alguns livros exilados no quartinho de empregada, outros na casa da minha mãe e tinha acabado de comprar uma terceira estante que já estava quase cheia, fora a prateleira que fica no meu quarto que abriga as HQs e a coleção Mulheres Modernistas que mora separada por motivos estéticos. Chega, eu quis gritar uma noite! Alguma hora vou chegar em casa e meus gatos terão morridos soterrados por livros, chega, chega, chega. Comprei um kobo.

Meu primeiro livro no kobo foi Barba Ensopada de Sangue (muito bom livro, aliás) durante a Flip. Foi meio coincidência, mas achei apropriado, já estava levando uma porção de livros para serem autografados, sabia que ia voltar com mais algum, podia economizar esse espaço. Em dezembro eu viajei para Israel e Itália com 5 livros na mala! Rory Gilmore c’est moi, era uma viagem de um mês, em Israel eu fico enfiada no kibbutz do meu tio sem ter o que fazer e sempre leio pra caramba, blá, blá, blá. Foi lindo, li todos eles, mas na volta precisei carregar Anna Karenina na mão porque já não tinha espaço na mala (eu sei né, ok levar cinco livros, mas não podia ser nada menos tijolo?).

Fui com o kobo e em parte foi a melhor coisa que eu fiz. Na Flip você já carrega caderno, câmera, livro pro autografo e assim levar o livro que eu estava lendo não acrescentava peso. Também era útil de ler nas filas, uma mão só, levinho. Imagina ler Ulysses na fila? (eu leio muito em filas, em pé no ônibus e tal, Ulysses quase me matou). Foi útil, foi lindo e maravilhoso, mas quando eu acabei e voltei para um livro de papel quase quis chorar de emoção.

Esse mês eu li meu segundo livro no kobo por conta de uma matéria que estou fazendo e ouvinte na Usp, como é uma matéria de literatura e bem, eu já tenho muitos livros, decidi ler todos os livros dela digitalmente. Também ajudou, eu mantinha um livro pesado em casa (O Museu da Inocência no caso, do qual falarei em um mês) e saia por ai livre e leve com meu reader. Eu já estava mais adaptada e foi aí que entendi o que me incomoda nele: é muito desapego.

Eu marco livros, grifo, anoto, risco, deixo recadinhos para mim mesma nas margens, emprestar livros é, para mim, um exercício de overshare. E eu sinto falta disso. Porque o kobo me deixa grifar e até fazer algumas notas, mas não é a mesma coisa que riscar, circular muitas vezes uma palavra, encher de !!!! aquela passagem que me define. Eu gosto da concretude do livro, eu gosto de me derramar no livro. Eu praticamente gosto de abraçar livros.

Acho que tem algo no peso do livro. Segurar Ulysses aberto era um sacrifício quase tão grande quanto ler o negócio. Você sofre com Ulysses, sofre lendo, sofre de dor nas costas, dor no punho, falta de posição, mas meu deus como vale a pena! Midnight’s Children, por outro lado, é grande mas leve. Minha edição pelo menos é. E o livro também é longo, um tanto difícil e sofrido, ocupa um puta espaço na bolsa, mas é leve.

Meus livros são quase meu lastro, eu não posso ir embora de vez, sabe? eu tenho meus livros! Como eles vão viver sem mim? Quem vai amar essa edição listrada de NW tanto quanto eu? Tenho planos de um doutorado fora e vou gastar uma fortuna enviando caixas de livros para a França.Mentira, não vou, porque desapego até dói, mas eu desapego fácil.

Estou fazendo mala para viajar de novo e nela vai uma edição relativamente leve de Catch 22, porque preciso devolver ao proprietário em um futuro próximo e só por isso, e o kobo. Não foi bem uma escolha voluntária, mas forçada pelos meus vôos de Pegasus Airline que só permitem 15kg de bagagem e são três semanas, quero estar bonita nas fotos, então vou gastar esse limite com roupas. Estou sofrendo, estou abraçando meus livros e querendo levar um Bashevis Singer de 760 páginas, mas não vou. Pretendo ler The Ocean at the End of the Lane e sei que vai ser sofrido, sei que vou querer riscar e sujar e amar, mas também sei que vou superar depois do primeiro capítulo. Eu não gosto do kobo, como não gosto de ser desapegada, mas é preciso se acostumar.

Esses dias alguém me contou que ia embora, que tinha até comprado um kindle. Foi nesse momento, quando ele me disse isso, que eu acreditei que ele realmente ia, não estava fazendo como eu, que anuncio toda semana que vou me mudar para a Índia com a roupa do corpo (aliás, pode ser que eu realmente vá para a Índia, de verdade verdadeira, mas conto isso depois). Alguém que chega a comprar um kindle é certamente alguém que se desapegou o suficiente para ir embora.

Eu comprei meu kobo faz um mês, nem sei do que raios eu estava me desapegando. Eu já sabia dessa viagem, já sabia dos 15 kg de bagagem, não sabia que talvez vá para a Ásia de mochila. Mas nem sei se foi por isso. Eu não gosto dele, mas uso cada vez mais. Do mesmo jeito eu não gosto do meu desapego, mas uso cada vez mais.

 

(mas é claro que continuo comprando livros e entupindo meu apartamento com eles)

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Lydia Davis, por que eu fiquei obcecada

(vou falar da Lydia Davis, tem dois parágrafos sobre a “linha editorial do blog”, pode pular)

Esse blog já foi sobre muita coisa. Ele já foi sobre moda, quando eu mexia com figurino, ele já tentou ser sobre as coisas que eu gosto e ele acabou sendo sobre mim mesma. E eu já fiz mais de um post dizendo que tinha esgotado o formato “falar de mim mesma” e ia tentar outra coisa, no fim, acabava voltando pro mesmo. Sempre penso em falar de cinema, sempre acho uma ideia meio estúpida.

A verdade é que eu sempre fui meu tema. Eu não consigo exatamente dizer que gosto de falar sobre mim mesma, mas a literatura, o cinema e a música que sempre me interessaram mais são aqueles extremamente confessionais: Fiona Apple, Bergman, Sylvia Plath. No entanto, ultimamente eu não consigo escrever, por mil motivos eu não estou me acertando com o formato que sempre escrevi aqui, mas eu sinto falta. Eu sinto muita falta de escrever, eu tenho essa necessidade de escrever o tempo todo, eu encho diários, arquivos de computador, até post-its, só não estou conseguindo encher meu blog. Eu escrevo em alguns sites dessa internet, eu falo de cinema principalmente e justamente escrever tanto me faz ver o quanto me faz falta. Porque me dói deixar o blog morto, eu vou tentar finalmente ser disciplinada e falar das coisas nas quais eu ponho a mão, livros, filmes, cds, essas coisas… e de vez em quando, quando vier, entram aqueles posts sem pé nem cabeça de sempre.

lydia-davis-break-it-downDepois dessa longa e chata introdução, eu vou falar da Lydia Davis.

A Lydia Davis traduz Proust, Flaubert e Blanchot e escreve contos e romances. Quase todo mundo leu Tipos de Perturbação, que a Companhia lançou traduzido em uma edição com capa maravilhosa, mas eu decidi ser hipster e ler Break it Down em inglês mesmo. Na verdade, quando anunciaram a autora para a Flip eu descobri que já tinha esse livro, não sei bem por que, acho que anotei de alguma lista do Flavorwire, ou short list/long list de algum prêmio, sei que já tinha, encostado ali na estante e decidi ler antes de ouvi-la falar.

Break it Down tem 34 contos, todos eles curtos, poucos com mais de 10 páginas, nenhum com mais de 12 ou 13. Todos os contos seguem um formato mais ou menos parecido: um fluxo de consciência, em terceira pessoa, na maior parte das histórias girando em torno de um tema só.

O primeiro conto, por exemplo é o turbilhão sem sentido da mente de uma mulher que liga para o “relacionamento claramente não estável” e descobre que ela está com a ex. Por todos os motivos óbvios, a Lydia Davis me ganhou aí. Não só pela identificação barata de se ver nas mesmas circunstâncias, mas pela construção do pensamento da personagem: o cérebro da protagonista dá voltas em torno do nada, cria mil possibilidades a partir de um respiro, se enrola, vai, volta, é absolutamente neurótico e sem sentido. Igualzinho o meu. Achei de um primor e de uma exatidão o como ela captura o fluxo dos pensamentos não como corrente, mas como novelo, que me parece uma forma muito mais próxima da realidade.

O último conto também me chamou atenção, é, de novo, uma mulher, listando os sinais de perturbação em si mesma. É tão sem sentido analisar, reconhecer e catalogar os sintomas da própria loucura e ao mesmo tempo me parece profundamente real (talvez por que eu faça isso?) e talvez resuma bem a escrita da Lydia Davis: um fluxo de consciência extremamente auto-consciente.

É clara a influência de Proust, eu sentia ele em cada linha, mas ao contrário das frases longas, repletas e ricas, Davis tem frases mínimas, econômicas, sintéticas. A escrita dela é tão seca que me lembrou o Coetzee, de quem eu só li um livro (Disgrace), mas pelo menos nesse livro era alguém de uma escrita muito mais para fora, para o mundo, o real, o social, o que quer que seja. A Lydia Davis faz uma escrita do interior, do íntimo.

Acho que o que me ganhou tanto foi essa junção de uma literatura íntima com uma linguagem seca. Meus escritores preferidos são Hemingway e Plath e a Lydia Davis parece juntar os dois com um tipo de precisão que nunca tinha me conquistado na literatura, mas é algo que eu gosto muito no cinema. Ela fala do íntimo, mas escapa à influência óbvia da Virginia Woolf e é faz algo muito mais exato, limpo, preciso.

Eu uso muito esse conceito de preciso para falar do cinema do Haneke e do Kubrick, acho que o que quero dizer com ele é um domínio da técnica que permite encaixar o plano que é exatamente necessário em um momento, mas de uma forma que vai além do óbvio. Não é o plano esperado, é o plano perfeito. Mas não perfeito de uma forma totalmente genial e única e transcendente como o Tarkovski, é perfeita dentro dos quadros da técnica. E é isso que me parece que a Lydia Davis faz.

Ela retira o excesso e ordena palavras de uma forma exata, mas não óbvia. E ela consegue captar o funcionamento não exato e não racional da mente humana. Talvez não seja bem um fluxo de consciência, talvez seja uma polaroid de estados de pensamento (de perturbação?)

Correções

… cada família infeliz é infeliz à sua maneira 

Eu não sou boa com pontualidade, qualquer um que já saiu pra tomar cerveja comigo sabe disso. Eu tenho alguns talentos: senso de humor sarcástico, fazer doces e consolar pessoas, mas pontualidade e organização definitivamente não fazem parte deles. Assim, eu venho aqui agora falar de The Corrections, quase um mês depois de ter lido o livro.

O engraçado de falar de um livro um mês depois de ler é que eu não lembro mais o que queria originalmente vir falar. Não lembro há ponto de ter passado os últimos dez minutos encarando a página em branco do WordPress e considerar “deixa, demorei demais”. Mas não, não. The Corrections, vamos lá.

The Corrections é um livro longo. Longo, com vários narradores, várias histórias e aquela história tradicional de “o que há por baixo do subúrbio americano” que aliás eu gosto muito. Talvez seja ter crescido em um lugar que, se você parar pra pensar, parece um pouco os subúrbios americanos de livro, mas algo nessas histórias me atrai. Me lembra ouvir que eu estava ali porque minha mãe tinha escolhido estabilidade, segurança e calma e então descobrir que a ex-namorada do cara com quem eu ficava pulou da janela.

Ou talvez seja meu simples desgosto por tudo que é organizado, limpo, “como se deve”. E talvez por isso eu tenha gostado tanto de The Corrections.

Em Freedom (que eu gostei até mais) o Franzen trata de personagens que querem escapar, aqui eles querem se conformar, se corrigir. É um livro sobre uma mulher que só gostaria que seus filhos fossem como deveriam ser, sobre um homem que teme ser deprimido mais do que tudo porque isso não é como ele deveria ser, sobre outro que foge de tudo que o pai acha que ele deveria ser porque isso é que ele acha que deveria ser e sobre uma moça que faz todo o esforço para ser algo, mas nem sabe bem que raios deveria ser.

Eu me identifiquei com ela. Eu grifo livros e eu recobri de asteriscos e setas as partes da Denise. Não que eu seja idêntica a ela (ela é, afinal, organizada), mas a sensação de que há um padrão a ser seguido mesmo que você não saiba exatamente qual é ele soou bem familiar.

The Correction é um livro sobre uma família infeliz. Infeliz como todas as famílias são infelizes, embora cada uma à sua maneira. Mas The Corrections é um livro bem próximo da maneira da minha família de ser infeliz, aquela maneira que espera que você seja algo e é claro que você (ninguém) nunca é. É um livro sobre querer se corrigir, de que, por que, ninguém sabe.

No fim de The Corrections os personagens acabam bem. Porque querer ser o que você deveria não é um grande drama e o Franzen é realista: há algo por baixo da existência de subúrbio, há algo por baixo de toda família, mas no fim nós estamos aí, razoavelmente bem, a maior parte da humanidade. Talvez seja um livro sobre isso, sobre ser ordinariamente infeliz como todo mundo o é, e talvez por isso eu tenha gostado tanto.

(esse não é absolutamente o texto que eu tinha planejado, mas oh well)

Platinum Blond Life

Eu estou lendo Scott Pilgrim. E desde o início eu brinco dizendo que sou um pouco Ramona. Pelo armário cheio de chás e o gato, mas por não contar coisas óbvias pra quem devia e pelas horas que ela vira pro Scott Pilgrim e diz “pra sair COMIGO? tem que ser bem burro mesmo.”

Mas na hora em que ela se sente insegura e corta todo o cabelo que vinha deixando crescer eu não sabia se ria ou se chorava. Nos últimos 10 anos meu cabelo teve todas as variações de curto, médio, comprido, muito curto, com mechas rosas, pontas rosas, pontas roxas, todo rosa, loiro natural, com luzes, platinado, ruivo. E ele nunca, NUNCA, mudou por acaso.

É estúpido e é clichê, mas eu mudo meu cabelo cada vez que sinto que vou entrar em um abismo. Quando eu sai de casa, quando comecei a trabalhar, quando decidi acabar o namoro, quando decidi começar algo com alguém que eu sabia que não devia, quando acabou.

Em uma cena em Girls, o Adam (namoradinho da personagem da Lena Dunham) pergunta por que ela fez tantas tatuagens e ela responde que engordou muito no colégio e as tatuagens eram uma forma artificial de dizer que ela ainda tinha controle sobre o corpo.

Eu mudo o cabelo porque meu desespero de não fazer nada precisa de uma saída. Estúpida e artificial como é. As pessoas me perguntam se vou ficar muito tempo ruiva e eu quero responder “depende se minha vida anda ou não”.

É estúpido, mas é ridiculamente reconfortante saber que você pode refletir a inconstância de dentro na aparência. Que você pode gritar para o mundo “eu não sei me comprometer, olha só, eu mudo a cor de cabelo a cada seis meses! Eu sou tão ruim em lidar com as coisas que vou lá e desconto no cabelo!”

Eu sou um pouco Ramona Flowers. Eu pinto o cabelo quando me sinto insegura, eu não respondo coisas  que devia responder. Eu me faço de distante porque é a distância que eu queria manter. Mysterious and aloof just to avoid getting hurt.

Voltaire com Vonnegut

Em um ponto da vida eu me apaixonava por bandas. Ok, apaixonar é uma palavra forte. Mas sabe, aquele momento que algo em você mexe e você pensa “humpf, eu gosto dessa pessoa”? Por um tempo eram bandas. O menino que tinha uma banda de hardcore, o que conhecia Bikini Kill, o que usava uma camiseta do NIN…

Hoje em dia eu me apaixono por livros. Eu estava sentada na livraria mais cedo, com um café e sendo absolutamente não sexy lendo A Song of Ice and Fire quando vi que o menino do lado tinha uma pilha com Voltaire, Vonnegut e Jonathan Franzen e me apaixonei um pouquinho. Não é porque o gosto dele seja igual ao meu, ok, eu gosto de Vonnegut, sou groupie do Franzen, mas eu nunca leria Voltaire. É porque alguém que mistura Voltaire com Vonnegut é alguém que faz meu tipo.

Uns meses atrás uma amiga tentou me convencer a tentar algo porque “os livros de vocês combinam” e ela estava certa! (deu errado, mas ela não deixa de estar certa por isso). Não é que eles fossem iguais, mas a Jane Austen poderia tranquilamente fazer amizade com o Robert Frost, a Sylvia Plath teria se dado bem melhor com o Bukowski e me faltava sci-fi onde pra ele faltava literatura russa.

É como se seus livros fossem ser obrigados a conviver, a dividirem estantes e conversarem a noite, enquanto vocês dormem. É como se cada um deles, com todos os rabiscos que você fez e todas as frases que decorou fosse obrigado a conviver com os trechos grifados e as páginas manchadas de outra pessoa. E no fundo é um pouco isso né? Cada pedaço que se impregnou em você, cada coisa que te faz pular do sofá e dizer “sim! é isso!” tendo que conviver com tudo aquilo que toca, e dói, no outro.

Hoje em dia eu me apaixono por livros porque de alguma forma eu decidi que eles são pedaços de quem se é muito mais do que músicas ou filmes (!!!), porque o livro que você escolhe, que você carrega e guarda são um bom indicativo de quem você é.

Ou eu só quero justificar essa minha vontade eterna de viver em uma comédia romântica.

A little bit Daisy Buchanan

-Você é a Daisy Buchanan

-Não sou não. Ok que as pessoas não me amam nem nada, mas eu ainda não sou tão odiada.

-Você deixa as pessoas te amarem, mas você nunca ama de volta. Ou, quando ama, você é orgulhosa demais, ou tem medo demais, para demonstrar qualquer coisa.

-Ela amou o Gatsby, a vida inteira.

-Sim, claro, mas ela deixa ele ir embora. Casa com o primeiro cara que gosta dela, que a idolatra na verdade, mas ela nunca sente nada. E quando o Gatsby volta ela só demonstra qualquer coisa quando tem absoluta certeza de que tudo aquilo, a mansão, as festas, tudo, era pra ela. Ela espera ele fazer o movimento primeiro. E mesmo assim ela não arrisca, ela não foge com o Gatsby, ela opta por não sentir nada. E como você tem certeza que ela amava mesmo o Gatsby?

-Eu não tenho, nem ela tem. Talvez por isso ela não fuja, é muita coisa a perder por amor. E amor acaba, amor vai embora, ela sabe que o Gatsby ama uma imagem, um sonho, algo que ela nunca poderia ser. Ele necessariamente se decepcionaria com a Daisy de verdade e ela teria perdido tudo.

-É isso né? Você deixa que amem sua imagem. Você deixa que amem essa aura de coisa impossível, de inconstância em você. E depois você se aproveita disso e foge.

-Não, eu mostro uma imagem que as pessoas estão dispostas a amar.

-Por que o que você é de verdade nunca poderia ser amado? Você nunca poderia se colocar no lugar da pessoa vulnerável, daquela que deseja alguém, que quer amor e atenção, porque não teria a menor possibilidade de alguém corresponder a isso? Uma vez que se colocando nessa posição essa imagem desaparece.

-Exatamente. A Daisy só é a Daisy e só é desejada na medida em que a voz dela soa a dinheiro. Você fala demais em amor. As pessoas são obcecadas com imagens de outras pessoas e passam a vida tentando encaixar isso nas pessoas erradas. o Gatsby só era um pouco mais lúcido e nunca projetou em ninguém.

-E a Daisy?

-Talvez ela nunca tenha amado ninguém. Talvez ela tenha e doa tanto que ela se recuse a projetar essa imagem e tentar de novo. Talvez a única coisa que ela tenha seja uma voz que soa a dinheiro. E tudo que você tem é muito a perder por amor.

-Você tem medo de perder quem você é.

-Eu tenho medo é de não ser nada.